Caso desejem ver há uma interessante entrevista do autor deste blog acerca da regulamentação dos profissionais do sexo:
Anarco-babélico: aventuras de um anarquista na Torre de Babel
Uma vida a contestar as leis conservadoras, pois o que elas conservam? Apenas o ranço do ódio e os traços mais rasos da mediocridade. Nessa Torre de Babel que é o mundo, em que 6 bilhões de seres falam 6 bilhões de diferentes línguas, esta aqui está afiada e afinada para o diálogo com todas e todos que desejem abandonar os regramentos ditados por uma meia dúzia de vitorianos.
domingo, 1 de setembro de 2013
Opúsculos de hipocrisia
Recordo-me perfeitamente de quando a então deputada federal
Marta Suplicy, em 1995, apresentou Projeto de Lei aos seus pares pedindo apoio
para formalizar a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Quase vinte anos nos
separam daquele evento: eu devia ter meus 13 anos de idade ou quase 14.
Parecia-me absurda a ideia de que dois homens ou duas mulheres pudessem viver maritalmente. Aliás, pareceu estranho à
imensa maioria da população. Houve quem falasse que seria melhor propor a
“união entre duas torneiras ou duas cabras”, já que o projeto era aberrante de
per si. Tais palavras foram ditas no parlamento, e não pelo vulgo.
Nessa hora lembro-me da fala de uma senhora espírita, mãe de
certa colega de sala: muito bem casada, mãe de quatro filhos, séria, enfim, era
mulher que carregava consigo todas as adjetivações possíveis de “senhora
respeitável”. Na pequena Penápolis, lembro-me de sua voz como a única favorável
ao projeto: “mas o amor é isso”, dizia ela. “Não tem idade, sexo, religião,
nada. Meu marido é descendente de japoneses e tem sua cultura própria. Eu tenho
a minha. Nós nos respeitamos e nos amamos. A única diferença entre nós e duas
pessoas do mesmo sexo é o preconceito, e nunca existirá um argumento contrário
à união gay que não seja preconceituoso”. Passados quase vinte anos desta
afirmação, constatei sua verdade.
Não foi a decisão do Supremo Tribunal Federal que me tornou
favorável à união homoafetiva, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo ou à
criminalização da homofobia. Em 1953 Jorge Jaime já defendia o casamento homoafetivo,
embora com propósitos muito distintos do atual. Afirmava que este enlace seria um
antídoto contra causas as mais diversas: por ser ato público, comunicaria à
sociedade que os cônjuges são “anormais”; não haveria perigo de uma jovem inocente
casar-se com um homossexual passivo e, desta forma, ser infeliz no casamento (e seria feliz se fosse casada com um
homossexual ativo?). Ademais, afirmou que o casamento homossexual afastaria
a exploração, a chantagem e a prostituição masculina. Há 60 anos, portanto, a
homossexualidade era questão ligada ao ato de prostituir-se; hoje o é em
relação à pedofilia. Ignorância e preconceito, além de caminharem lado a lado,
não se tratam de novidade em temas polêmicos.
A diferença é que Jorge Jaime redigiu seu texto num tempo em
que a Organização Mundial de Saúde classificava homossexualidade como doença.
Lendo seu texto como se estivéssemos em 1953, seria até uma proposta bastante
ousada: não havia ainda revolução sexual, os namoros eram em praças públicas
(no máximo de mãos dadas) e nas salas de casa, supervisionados pelos pais o
casamento era indissolúvel, o homem poderia quase que tornar-se “dono” da
mulher (vide Estatuto da Mulher Casada), etc. Associar, hoje, pedofilia à
homossexualidade é desonesto intelectualmente. Não há provas, relatos ou sequer
indícios. Pedofilia sim é doença, e que atinge homens e mulheres, tanto hetero
quanto homossexuais. Mas a criança não tem sexualidade própria? Sim, claro, e a
desenvolve conforme suas etapas de desenvolvimento físico e mental.
No entanto, aos olhos de um adulto, a criança é um ser que
transpira inocência e não possui qualquer atributo físico ou de outra natureza
que possa despertar cobiça sexual. E aqui apenas para frisar: pedofilia é o
desejo por alguém com idade inferior a 14 anos. Caso uma adolescente de 16 ou
17 anos atraia sexualmente um homem, frise-se, isto não é pedofilia: a moça em
questão já terá seus atributos físicos e intelectuais semelhantes ao de uma
mulher adulta e, por certo, nada parecido com uma menina de 5 anos que quer lhe
apresentar a casinha que montou com suas bonecas.
De qualquer forma, como quer Cora Coralina, “bondade também
se aprende”. Capacidade para absorver informações e sobre elas refletir, tal
como bondade, também se aprende. Relato aqui o que poderíamos denominar de
“preconceito” meu – mas que chamo de “espanto” – com o projeto de Marta
Suplicy, em 1995. Desde meu nascimento até aquela data, para mim era “natural”,
inquestionável e dentro da lógica que rege o universo o casamento
heterossexual. Apenas isto.
Há pouco tempo ainda havia resquícios da lei do divórcio.
Minha mãe, divorciada em 1984, perdeu seu emprego pelo fato e eu não consegui
matrícula em uma Escola por ser filho de “gente separada”. Hoje isto é ilegal e
risível, mas na época era apenas ilegal e nem todos queriam ver. Para mim,
homem se casava com mulher e vice-versa; podia divorciar-se, casar novamente,
não mais casar ou passar a vida solteiro, mas nada além disso. Já os
homossexuais viviam no limbo.
Creio que cada um de nós teve um parente ou conhecido
homossexual. Havia em minha família o primo gay, a prima lésbica, dentre
outros. Seus companheiros nos eram apresentados como “amigos”, e até certo ponto fingíamos que se tratava de amigo mesmo,
pois entre eles não havia demonstrações públicas de carinho ou afeto. A
possível união entre eles destruiria esta imagem hipócrita do “amigo” e da
“amiga”, trazendo à tona, aos nossos olhos, a sexualidade deles – por nós
sabida e reprimida, e por eles apenas reprimida para satisfazer nossa vontade.
Eles sempre obtiveram nossa “aceitação” porque nunca se declararam
homoafetivos, nem apresentaram seus pares como companheiros. Até aí nunca
transgrediram as normas da heteronormatividade existente em família, e por isso
eram bem-vindos.
Para mim, particularmente, foi necessário algum tempo de
leitura e reflexão para entender que errados estávamos nós. Por que, afinal,
naquelas festas de fim de ano fingíamos que o primo trouxe seu “amigo”, ou a
prima estava com a “amiga”, enfim, se sabíamos que não era amizade o sentimento
que os unia? Comecei a compreender, já cedo, nossa predileção pela hipocrisia.
Em minha tese de Doutoramento senti a mesma coisa.
Inicialmente era apenas um projeto a ser apresentado aos professores do
Departamento: “Trabalhadores do sexo e seu exercício profissional – um enfoque
pelo prisma da ciência jurídica trabalhista”. Já de cara me perguntaram: “o
senhor pretende vir a esta Faculdade defender prostitutas?”. Eu calmamente
respondi que não se tratava de defender, e sim estudar não apenas a prostituta
(parece que o trabalho do sexo aviva o eterno feminino), mas também
trabalhadores do sexo masculino, os chamados “michês”. As discussões foram
muitas para saber se me aceitavam ou não, mas acabei sendo aceito.
O problema, para além das justificativas morais, residia na
questão penal. Inicialmente, havia dificuldades – aí sim apenas no campo moral –
para reconhecer o trabalho sexual como forma de trabalho. E se é forma de
trabalho, de alguma maneira se insere no mercado e na produção. O que é
vendido? Certamente algo que se situa na esfera do desejo o que, para nossa
sociedade burguesa, é tema proibido. As pessoas são castas e assexuadas. Os
pais não têm desejos. A avó, idem. A irmã é dessexualizada, como em Hamlet.
A questão penal residia nos tipos referentes à dita exploração
sexual e, de forma específica, no crime de “casa de prostituição”. É estranho,
porque se alguém mantiver uma casa em que ocorra corrupção, punidos serão os
criminosos, não o proprietário do estabelecimento. Mas na casa de prostituição,
pelo simples fato de ela existir e lá se exercer um trabalho lícito, o caso vem
a ser tema criminal.
No entanto, de quantos prostíbulos já tivemos notícia ao
longo de nossa vida? Nunca conheci uma cidade sequer, e duvido que exista, na
qual não haja casa de prostituição. Todos conhecem sua existência, histórias de
lá se tornam músicas, e as autoridades... nada fazem?
Fazem sim. Cobram propina dos donos de bordel para que não
instaurem inquérito policial e não haja desfecho indesejado para todos. O
próprio sistema alimenta a corrupção e dá margem à existência de locais em que
ocorre verdadeira exploração sexual, com o pagamento de porcentagem ínfima dos
programas aos trabalhadores do sexo, mantendo-os em algumas vezes quase que em
cativeiro. É isto que nossa hipocrisia requer.
Minha tentativa de tapa na cara da hipocrisia (ou murro, se
preferirem) foi a nova redação dada ao crime, que agora proíbe a existência de
casa em que ocorra exploração sexual. Para mim, exploração é mediante proveito,
abuso, fraude ou engano de pessoas, mantiver estabelecimento para abusar do
trabalho sexual de alguém, seja privando a liberdade de ir e vir, seja retendo
porcentagem absurda do valor cobrado do cliente (no projeto do deputado Jean
Wyllys, há referência à retenção superior a 50% do valor cobrado do cliente. Eu
ajustaria esta cifra para 30%).
Houve uma mudança radical (de ir à raiz mesmo) no
citado crime: o que se proíbe é a existência de uma casa em que, mediante
engodo ou ardil, mantenham-se trabalhadores em condições análogas à de escravo
ou de forma degradante. Já um bordel, casa de massagem, sauna, etc., em que
livremente as pessoas exerçam seu trabalho e mantenham uma relação de
patrão/empregado com o proprietário, haverá um estabelecimento legal. Dizer o
oposto é interpretar a lei nova com o espírito da lei velha, coisa que o
Judiciário sabe fazer como ninguém.
Esta interpretação abre espaço ao reconhecimento de relações
empregatícias entre o trabalhador do sexo e o proprietário da casa. Como se
sabe, o empregador possui uma série de obrigações, como zelar por higiene e
segurança do trabalho, recolher INSS do empregado, pagar por adicional de
insalubridade, conceder férias, repouso semanal remunerado, pagar décimo
terceiro salário, além de recolher FGTS. Tudo isto – rigorosamente tudo – é negado
ao trabalhador do sexo por conta de dispositivos penais de 1.940. Até
empregados domésticos, que conquistaram equiparação de direitos com os demais
profissionais, não se encontravam nessa zona límbica dos trabalhadores do sexo.
Sei que, num primeiro olhar, tudo o que digo aqui pode
causar preconceito – ou “espanto”, caso preferirem. Mas é a mesma surpresa
trazida pelo projeto da deputada Marta Suplicy em 1995. Quanto mais debatermos,
escrevermos, lermos e refletirmos sobre este assunto, menor será o nosso
preconceito e o de outros.
Dizem que a prostituição é o trabalho mais antigo do mundo.
Não há evidência científica disto, mas de outra coisa há: trata-se de um dos
misteres mais antigos do mundo. Inexiste novidade na discussão que lhes
proponho. Pensem e reflitam: continuaremos nesta nossa predileção pela
hipocrisia?
Recentemente foi lançado um livro intitulado A história social da desculpa, que
mostra como ao longo dos tempos, com receio de dizer a verdade, inventamos
desculpas as mais diversas, desde um “sinto muito, estou com dor de cabeça” até
expedientes mais elaborados. Talvez uma História
social da hipocrisia nos mostrasse o porquê de tudo que foge a esta nossa
moral burguesa (e aqui falo de dois temas: prostituição e homossexualidade) nos
causa tanto espanto!
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